A gente leva para toda a vida as marcas do lugar onde nasceu e cresceu. Eu ainda trago bastante do menino nascido e criado na Colônia, em Charqueadas, que se aventurava nas tardes de verão pela beira do rio Jacuí, embretando-se por entre os “amaricás” (era assim que a gente os chamava, com “a”) e banhando-se nas águas, já nos anos 1970, barrentas e escurecidas. Logo, tenho uma relação construída com o rio.
Assim fiquei com essa coisa de gostar de água, de querer ser marinheiro. Lembro da primeira vez que vi o mar. Nunca mais tive dúvidas acerca do significado da palavra portento. Um gigante imenso com uma voz onipresente e um infindável hálito refrescante. Foi um grande impacto em minha vida. Desenhava caravelas todo o dia e sonhava ser marinheiro...
Porisso, falou em andar de barco, caíque, canoa, caiaque, falou comigo. Não costumo perder passeios desse tipo. Adoro. Entretanto não estou escrevendo esse texto para compartilhar minhas subjetividades e idiossincrasias, mas sim para falar novamente do Jacuí (tenho intimidade suficiente com ele para não precisar usar o “rio” antes). Sempre que vou a alguma cidade que tenha rio, comparo-a com Charqueadas, com a relação dela com o Jacuí.
Navegando no catamarã e no barco de turismo Cisne Branco em Porto Alegre, podemos ter um outro olhar sobre a capital. Tanto subjetiva quanto objetivamente. O mesmo acontece em qualquer outro lugar, como em Torres, para citar uma cidade litorânea do nosso estado. Olhar a Ilha das Pedras Brancas, o Gasômetro, o Beira Rio, os morros, o Museu Iberê Camargo, as pontes, os edifícios, a rebentação, a Ilha dos Lobos, as falésias de uma perspectiva de quem está no rio ou no mar é um dado objetivo que acaba acrescentando algo a sua subjetividade, algo novo, excitante, prazeroso, reflexivo.
E nisso passamos a renovar a construção da gente com a cidade, ver que ela não é o centro do nosso mundo, que o rio e o mar não estão à serviço delas, mas que tem sua identidade e o seu valor intrínseco. E começamos a ter uma relação diferente com eles, mais qualificada e respeitosa.
E Charqueadas não tem, bem sabemos, uma relação qualificada e respeitosa com o Jacuí. Fala muito do rio, faz homenagens, mas isso é semelhante àquela coisa de quem nunca fez nada pela pessoa e, depois que ela morre, fica dando discursos em sua memória. Vejam o caso de São Jerônimo. A gente vai em SJ e fica olhando a Praia do Encontro, o transporte fluvial de passageiros para Triunfo e percebe uma cidade que tem uma relação positiva com o seu rio. O fato de navegarem até Triunfo faz com que possam ter uma noção subjetiva diferenciada dele e da cidade. De Triunfo pode-se dizer o mesmo. De Charqueadas não mais, isso perdeu-se no tempo e pelo desenvolvimento de costas para o Jacuí. Quantos charqueadenses sabem a cara que a cidade tem se vista da outra margem?
Pois agora a Justiça multou Charqueadas e o Rio Grande do Sul em 900 mil reais devido ao esgoto dos presídios jogado diretamente no Arroio dos Ratos, afluente do Jacuí. Alguém tinha mesmo de fazer algo à respeito disso. Sei que esse dinheiro para saldar a multa virá dos impostos que pago e que alguma obra ou serviço que reverteria em meu benefício será prejudicada pela multa. Mas não podemos nós, charqueadense e gaúchos, achar que os rios e arroios são a extensão natural das nossas latrinas.
Talvez essa multa seja um momento interessante para desenvolvermos um olhar diferente para o rio e o arroio, como se estivéssemos do outro lado da margem, cônscios que a cidade deve ter seus interesses reformulados.