Charqueadas está de costas para o rio, usando-o como latrina. O Jacuí, que foi o pai da cidade, está abandonado tal qual um ancião esquecidodo num asilo. Não há o que fisicamente não demonstre isso: o esgoto não tratado, o lixo acumulado, o abandono do leito, e assim (não) vai. Mas a deterioração dos prédios da antiga Charqueadas situados naquela região sublinha com perfeição a metáfora do idoso rejeitado.
Alguns desses prédios vítimas de atrocidades culturais que só a ignorância, aliada ao descaso, conseguem explicar. A demolição, décadas atrás, do portentoso Solar dos Barcelos, o “Casarão da Colônia”, é (mau) exemplo. Propriedade do charqueador e senador Ramiro Fortes de Barcelos, erguia-se imponente ante ao rio, em ode ao mesmo. Barcelos foi o autor do famoso livreto chamado Antônio Chimango, de 1915, onde, com o pseudônimo de Amaro Juvenal, desmoralizava o então governador Borges de Medeiros.
Lembrei disso assistindo ontem o Café TVCom gravado em Pelotas, apresentado pela jornalista Cláudia Laitano e contando com a participação, dentre outros, do cantor, compositor e escritor Vitor Ramil. No programa, em homenagem aos 200 anos da cidade e aos 100 anos do lançamento de Contos Gauchescos e lendas do Sul, do pelotense Simões Lopes Neto, um dos assuntos foi a má conservação dos prédios históricos de Pelotas (alguns deles sedes de charqueadas) e também a demolição de vários décadas atrás. Os que restam vão purgando rumo à condição de ruínas, as almas penadas arquitetônicas das cidades.
Imaginem se o Solar dos Barcelos ainda existisse, nesses 30 anos de Charqueadas? E se fosse tema de um projeto público visando captar verbas estaduais ou federais para sua restauração? A mansão do político, médico, escritor e charqueador poderia ser hoje uma referência cultural da região e do estado, um prédio transformando em equipamento cultural servindo à memória de um período histórico que dá nome a cidade. Se... Poderia... Já era!
E as charqueadas, como as de Pelotas e a do senador, aqui vieram por causa do rio. As construções, como o Casarão, voltavam-se para ele demonstrando concretamente a sua centralidade para o povo de então. Hoje, qual a construção importante de Charqueadas que é voltada para o rio? Nenhuma. Sintomático...
De tudo isso ainda resta um possível monumento, um prédio comercial privado desativado há tempos, voltado para o rio, de propriedade de uma família rica em personagens importantes na história política e econômica da cidade: O Baar Xarqueadas, onde também funcionava o Café Recreio. Está lá, como que pedindo para ser transformado num equipamento público cultural, num projeto histórico e ecológico que pode revitalizar as margens do Jacuí, resgatando também a relação afetiva da população com o rio e com sua própria identidade histórica.
Esse prédio a voracidade das palavras “se” e “poderia” ainda não consumiu. Ainda... Resta saber “se” e “ainda” estamos no período da ignorância e do descaso, onde o patrimônio histórico que permanece resistindo heroicamente em pé continuará vítima de atrocidades culturais. As palavras tem força? O tempo tem, uma força paulatina e inexorável sobre os desatentos.