Foto - Seminário de formação política realizado pelo PT Charqueadas em 1990, na zona rural da cidade, numa fazenda situada na estrada que vai para Arroio dos Ratos. Da esquerda para a direita: Maria Lúcia Rocha, Enedina Laranjeira (sentadas), Daltro Ferraz, Afre, Paulo Augusto (sentado), Paulo Pedreira, Almerindo Dutra, Cândido Dutra, Cláudia Pedreira, João Guerreiro, ????? e Maria José Diniz.
Um político exemplarFalecido no último dia 4, o ex-vereador Jorge Afre Rodrigues foi uma referência para toda uma geração de políticos de esquerda de Charqueadas.
Dia 12 de maio caiu num sábado. Fui a Porto Alegre com a família curtir um cinema para relaxar o corpo e a mente. Confortavelmente acomadado na poltrona do ônibus, ao abrir o caderno de cultura do jornal Zero Hora, deparei-me com um texto chamado "Uma professora exemplar", de Maria da Glória Bordini, escrevendo sobre a recentemente falecida (06/05/12) professora universitária de Literatura Portuguesa Maria Luiza Ritzel Remédios (quem conseguir achar o texto, recomendo, vale a leitura). Li o texto e na hora tive a idéia de escrever algo na mesma linha sobre meu amigo Afre, pois, acima de tudo, ele foi um político exemplar.
Uma das coisas que sempre incomodou o Afre foi esse senso comum que leva as pessoas a terem uma péssima imagem dos políticos, nivelando-os por baixo, como se todos fossem malandros ou corruptos.
Gerado nas lutas operárias do final dos anos 70 e início dos anos 80, com a ideologia de esquerda típica dos anos 60, Afre era um político ideológico e íntegro, firmemente calcado em valores éticos, morais e programáticos na luta política. Este que vos escreve e muitos outros, que conviveram política e fraternalmente com ele, atestam isso.
Afre trabalhou a vida inteira, largou sua atividade laboral como metalúrgico e a militância sindical para dedicar-se exclusivamente ao sonho da boa luta e da boa política, defendendo sempre os interesses dos trabalhadores assalariados, o socialismo e a democracia.
Foi vereador, assessor parlamentar na Câmara Federal, secretário municipal de Obras.
Seus últimos dias passou em um hospital pelo SUS, vivendo basicamente de sua aposentadoria pelo INSS.
Além de toda a sua bagagem política, nunca cometeu deslizes no tocante ao dinheiro público: jamais se envolveu, em seus dois mandatos, em farra de diárias (devolvia os valores que não gastava); não teve nehuma mácula administrativa em seus 4 anos como secretário de Obras. Podia falar mais sobre essa questão, mas creio que isso já basta. Vou abordar sua bagagem política.
Afre era uma pessoa muito inteligente, bom orador e com grande espírito de liderança, qualidades que saltavam imediatamente aos olhos de quem o conhecesse. Era desses políticos sem escolaridade superior mas com grande capacidade de influência e de articulação, tipo que temos como expoentes máximos o ex-presidente Lula, o senador gaúcho Paulo Paim, o deputado paulista Vicentinho (que estudou Direito anos depois de ter tornado-se lider político, na Uniban).
Tanto que na segunda metade dos anos 80, ao se filiar ao PT egresso do movimento sindical metalúrgico, tornou-se sua referência maior em Charquedas e na Região Carbonífera. Ajudou a consolidar o partido em Charqueadas (concorreu em 1988 e 1992 a vereador ficando entre os mais votados, só não assumindo cadeira por falta de cociente eleitoral do partido) e em outras cidades, como Arroio dos Ratos, Butiá e São Jerônimo.
Seu papel como liderança política, articulador e construtor partidário foi fundamental no processo que levou o PT a ocupar a prefeitura de Charqueadas em 1996, com o médico Jaime Guedes e com o metalúrgico José Abrahão.
Em toda a sua trajetória política,
seu maior orgulho e, também,
seu maior legado foi a
formação de muitas lideranças politicas na cidade.
De seu grupo de apoiadores de 1996, quando se elegeu vereador com a maior votação da história da cidade (5.02% dos votos válidos), saíram quatro candidatos para a eleição seguinte, em 2000: ele, Paula Vieira, Valdomiro Gama e Manoel Henrique Paulo. Ficou muito feliz por ele e Paula terem sido eleitos e por Valdomiro e Mané terem ficado na suplência.
Uma vez em seu gabinete, quando exercia seu primeiro mandato de vereador, olhou-me firme, como era sua característica, e perguntou: "João, sabe o que eu aprendi nesse tempo que eu estou como vereador?" Ao ver em meu olhar que eu não sabia o que dizer, arrematou: "Aprendi que independente da quantidade de votos que eu fiz, que aqui em sou tão vereador como qualquer outro que tenha feito a menor votação". Embora ele passasse uma imagem de arrogância, pela maneira forte de fazer o debate político, sempre muito bem fundamentada técnica e politicamente (tinha uma velocidade de raciocínio e uma memória prodigiosas), Afre cultivava sinceramente a humildade como valor pessoal e a praticava em sua vida privada.
Das pessoas que o apoiaram em 1996, Paula foi vereadora e vice-prefeita, Emília Guerreiro Procuradora do Município (atualmente trabalha na secretária estadual do Planejamento), Manoel Henrique foi secretário municipal de Cultura (hoje é diretor geral da Casa de Cultura Mário Quintana), Alexandra Virote secretária de Cultura e Everton Souza foi secretário de Finanças (está ocupando cargo de direção da CRM).
Um outro grande número de pessoas daquele grupo mantém atividade pública nos movimentos político, social, sindical e cultural. Ele mencionou isso com orgulho em seus últimos dias, no hospital, já debilitado pela doença.
E manteve a lucidez sempre, ainda achando tempo para fazer teses políticas sobre o futuro do Brasil: "João, o Brasil tem alimento, água e espaço físico, e isso vai ser fundamental no mundo nos próximos 20, 30 anos", era a sua tese mais recorrente na convalescença. Ainda torcia muito para que o suplente de deputado estadual Carlos Todeschini, vereador de Porto Alegre e seu amigo, asssumisse uma vaga na Assembléia Legislativa, caso alguns deputados estaduais se elegessem prefeito na eleição municipal desse ano.
Foi o Afre até o último momento.
Sempre atento ao que se passava a sua volta e a situação política geral e ao cotidiano das pessoas.
Ficou muito contrariado com o atendimento que ele e os outros pacientes recebiam na Emergência no Hospital Conceição, onde passou uns dias esperando vaga para um quarto. "João, isso aqui à noite é um umbral!"
Eu não duvidei em nehnum momento da lucidez de sua observação, mesmo ele estando com dificuldades para respirar, sem movimentar as pernas e bem abaixo do seu peso. A situação geral ali, a lógica do atendimento, as condições de trabalho e o comprometimento de médicos e enfermeiros eram apropriadamente avaliadas e analisadas por seu incólume intelecto.
Hoje pela manhã, antes de começar a escrever esse texto, assiti na TV que o Conselho Regional de Enfermaria interditou ontem a emergência do Conceição, restringindo-a apenas a casos mais graves. Qualificou-a como parecendo "uma emergência de campanha militar em tempos de guerra"
Foi o Afre até o último momento. Hoje completaria 63 anos. Deixou o seu legado de político exemplar.
Obituáriohttp://www.souzaguerreiro.com/blog.php?idb=32014