João Adolfo Guerreiro
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Textos
Futebol Gaúcho: violência, preconceito, drama, paixão e alegria

No sábado, dia 05 de agosto, fui ao estádio Olímpico assistir Grêmio X Juventude, acompanhado de minha esposa, minha filha de 8 anos e um sobrinho de 13 anos. Era a primeira vez que os menores iam assistir um jogo de futebol.
Fomos de ônibus. Como resido em uma cidade a 50 minutos de Porto Alegre, saímos às 12 horas. Na viajem, acabei sentando ao lado de um senhor de cerca de 60 anos que também ia ao jogo.

1 - O SENHOR
Ele comungava de muitos dos meus pontos de vista sobre futebol. Óbvio que nossa conversa versou sobre os fatos ocorridos no Grenal (Grêmio X Internacional) do domingo anterior e sobre o Inter estar disputando a final da Libertadores da América com o São Paulo.
O senhor também não concordava com os atos de vandalismo e violência praticados por parcela da torcida do Grêmio, que atacou a torcida rival e a Polícia Militar, depredou o Estádio Beira Rio (do Inter) e, inclusive, colocou fogo nos banheiros químicos do mesmo. Ele, contudo, achou exagerada a punição de perda do mando de campo por oito jogos no Olímpico pelo Grêmio e multa de 200 mil reais.
- Veja, a torcida do Corinthians fez quase a mesma coisa numa partida pela Libertadores, há pouco tempo, e não teve a mesma punição. Quando é com clubes do Rio de Janeiro e São Paulo eles abrandam as penas, mas com nós gaúchos e com os outros, para dar exemplo, as punições são severas.
Concordei. Tudo bem que uma pena deveria ser dada devido aos incidentes, mas porque a pena quase máxima, que, no caso, seria dez jogos e 200 mil reais? Ora, com os oito jogos e a multa, o Grêmio terá um prejuízo de quase três milhões de reais, entre perda de receitas de jogos e despesas provenientes. O clube recém veio da Segunda Divisão e não está no seu melhor momento financeiro. Isso deveria ter sido levado em conta.
E cabe a pergunta: se fosse com São Paulo, Corinthians, Palmeiras, Santos, Vasco, Fluminense, Flamengo, a punição teria sido a mesma? Ou por acaso essas coisas, principalmente em São Paulo, não acontecem seguidamente? Claro, como sou torcedor do Grêmio, estou um pouco legislando em causa própria, vendo o meu lado da questão. Mas não houve um excesso de autoridade no caso?
O senhor achava ser bom que Grêmio, Inter, Juventude e Caxias se unissem na defesa dos seus interesses enquanto equipes gaúchas e contra esse tipo de coisa. E nisso ele entrou em outro assunto:
- E também acho bobagem torcer contra o Inter na Libertadores. Se o Inter for campeão vai ser bom para o futebol gaúcho, que vai estar em evidência.
Concordei novamente. Essa rivalidade não está mais com nada. As duas maiores torcidas do Rio Grande não podem ficar num antagonismo tão exacerbado. A rivalidade deve ser no Campeonato Gaúcho e no Brasileiro e, no último, só se os dois estiverem em confronto direto pelo título. Do contrário, devemos torcer por times gaúchos e também brasileiros, quando estes disputarem títulos internacionais. E acho que o raciocínio vale para outros estados, onde vemos essa bobagem entre as torcidas de Flamengo e Vasco, Corinthians e Palmeiras, Remo e Paysandu, Cruzeiro e Atlético, e por aí vai. Vejam os baianos, por exemplo: Bahia e Vitória estão na Terceira Divisão. A rivalidade os ajuda?

2 - O TORCEDOR
Ao chegarmos na rodoviária de Porto Alegre, decidimos ir a um shopping lanchar, pois o jogo começaria às 16 horas. Estamos na praça de alimentação e passa por nossa mesa um homem magro de uns 40 anos, todo “paramentado” com o uniforme de uma torcida organizada do Grêmio. Nos vê e cumprimenta-nos com uma saudação gremista. Estamos todos vestidos de camisa do Grêmio, com exceção de minha esposa, que torce para o Inter. Comentei com ela:
- Vai ver que ele achou que somos da ala radical da torcida. Mas estou mais para Fatah do que para Hamas. Sou moderado.
O sujeito volta e senta na mesa ao lado da nossa e puxa conversa, amigável. Dentre as coisas que ele disse era mais ou menos o que o senhor havia falado no ônibus: os clubes gaúchos deviam se unir e o que tinha ocorrido no Beira Rio foi errado.
Ele estava no Beira Rio no Grenal da confusão. Disse que havia chutado uma bomba de gás jogada pela polícia, pois a mesma havia caído perto de seu filho de 8 anos. Achava que a polícia deveria ter identificado o pessoal da arruaça, que desde antes do jogo estavam depredando o exterior do estádio.
Bueno, vi que o cara também era do Fatah, apesar da impressão inicial. Contou que esteve em 1995 no Japão acompanhando a final do Mundial Interclubes entre Grêmio e Ajax da Holanda. Passou 11 dias por lá e relatou muita coisa legal, dentre elas que haviam 3 mil gremistas no Japão e vinte mil holandeses, aí incluídos 3 mil hooligans. Disse que a polícia japonesa era extremamente eficiente, pois presenciou a prisão de holligans em arruaças e viu os policiais acessarem computadores no ato do crime e verificar a situação internacional dos detidos. Segundo ele, quem tivesse problemas ia direto pro aeroporto!
Disse ainda que os brasileiros são muito bem tratados por lá. Eles tiveram tradutor acompanhando-os e fizeram amizade com o dono do restaurante-hotel onde ficaram, trocando camisetas do Grêmio por objetos japoneses.
Nesse ponto da conversa começou a revelar seus dramas pessoais: havia perdido a filha a quatro anos e não se recuperara, caindo no alcoolismo; sua mulher enlouqueceu com a perda; seu pai falecera no mesmo período; ele largou o emprego no hospital onde trabalhava, visto não agüentar mais conviver com o sofrimento humano; havia tentado se matar com um tiro de pistola no estômago há um ano atrás. Como continuava deprimido, ia dar a pistola a seu irmão, pois tinha receio de tentar o suicídio durante uma recaída.
Mas teve algo em especial que ele me disse e que me deixou refletindo: as únicas coisas que lhe davam força para prosseguir eram seu filho, sua mãe de 80 anos e o Grêmio. Eu sou torcedor, mas nunca coloquei minha paixão pelo futebol nesse nível. Às vezes, quando ele ficava emocionado face aos relatos que fazia, , cantava hinos da torcida organizada e, em alguns deles, improvisava sobre a letra homenageando a filha falecida.
Contava sobre o apoio que os outros torcedores lhe ofertavam, como no jogo entre Grêmio X Náutico no ano passado, em Recife, pelas finais da Segunda Divisão (vide texto “Com o Grêmio o impossível acontece”, aqui no Recanto). Quando, perto do final, o Grêmio tem um pênalti assinalado contra si, ele se desesperou. Um amigo disse: “Calma, o Galatto vai defender o pênalti e vai voltar para a primeira divisão, e nós vamos oferecer esse feito a tua filha que morreu”.
Nesse ponto, ele voltou a confidenciar outras passagens de sua vida: sobre uma prima que foi estuprada por quatro homens e ficou com fobia ao sexo; do amigo que morreu ao ser surrado por seis homens num bar e ainda levar um tiro na nuca; sobre a surra que deu, junto com seus amigos, em um homem que havia lhe agredido anteriormente com o auxílio de outros.
Antes de sairmos, ele ainda criticou alguns cânticos de torcidas organizadas do Grêmio contra o Internacional e que chamavam os seus torcedores de “macacos”. Isso para ele era racismo, ele não gostava, não concordava e não cantava. Nos despedimos e fomos pegar o ônibus para o estádio. Ele ficou lá, bebendo uma cerveja (era só o que ele bebia, conforme disse).

3 - O JOGO
Chegamos ao Olímpico. Como estava com os pequenos, resolvi descartar as arquibancadas e comprei ingresso para as cadeiras laterais, no anel superior do estádio. Ótima visão! As crianças adoraram.
Bom, o Grêmio ganhou o jogo por 1X0, com um gol de Evaldo, uma "paulada" de fora da área apanhando o rebote de uma falta cobrada por Tcheco que bateu na barreira. Haviam umas vinte mil pessoas assistindo. Se a punição for confirmada, somente em novembro ocorrerá outro jogo no Olímpico.
Chamou-me a atenção que, embora a proibição de as torcidas organizadas entrarem no estádio, elas lá estavam, mesmo sem as camisetas características e as bandeiras e faixas. Mas os cânticos chamando a torcida do Inter de “macacos” e “macacada imunda” eram entoados, mesmo o jogo não sendo contra o rival. Puro racismo! Esses cânticos deveriam ser proibidos.
Eles também se referiam ai Inter na Libertadores, desejando má sorte. Outra coisa que não concordo. Ora, sou gremista, não anti-Inter!
O pior é que os cânticos racistas sempre terminavam com o indefectível “vai tomar no cú”, dirigidos aos torcedores do Inter. Atrás de nós estava um homem de uns 50 anos acompanhando quatro meninos de aproximadamente 10 anos. E os moleques cantavam com avidez, principalmente o “indefectível”. Eu virava e olhava para eles com ar de contrariedade, incomodado por minha esposa e filha estarem ouvindo-os. Mas não adiantava, pois o homem, aparentemente de classe média, ainda sorria, aprovando e incentivando a atitude dos meninos. Depois não se sabe como esses arruaceiros se criam!
Outro detalhe não me passou desapercebido: enquanto os cânticos racistas eram entoados, no gramado pelo menos a metade dos jogadores do Grêmio eram negros. Mais contraditório ainda era o zagueiro Antônio Carlos, do Juventude, ser vaiado sempre que tocava na bola, devido ao fato de ter dirigido gestos racistas ao volante gremista Jeovânio numa partida do Campeonato Gaúcho deste ano. Antônio Carlos foi punido por isso. E os que o vaiavam estavam a cantar o racismo!

4 - DEPOIS
Voltei para cassa depois de um dia cheio de alegria e convivência em família da paixão pelo futebol. A criançada, muito satisfeita, não parava de comentar sobre a experiência vivenciada. Eu, apreciador do futebol, satisfeito com a vitória do meu time. Mas refletindo sobre tudo o que vi e ouvi.
Lembrei das palavras do torcedor do shopping. Uma paixão futebolística pode ser a força de viver de alguém, uma das únicas coisas que dá sentido a sua vida. Para alguns é o trabalho, a família, uma ideologia, uma crença religiosa, o trabalho assistencial. Para aquele homem, era o Grêmio. Isso dava sua noção de indivíduo social, pertencente a um grupo, a uma sociedade. Isso existe na vida real. Eu presenciei.
Lembrei também do artigo de um escritor gaúcho que escreve pro jornal Correio do Povo, o Juremir Machado da Silva. Em síntese, ele dizia que o torcedor é um colecionador de emoções e que o futebol não muda a vida de ninguém, seja qual for o resultado de uma partida. Mas vejam a importância que alguns dão para ele, incluindo aí atos de violência contra torcedores rivais! Para Juremir, essas são pessoas tolas, de alma pequena.
O futebol para mim tem importância emocional, de momentos vividos em família, entre amigos, compartilhando momentos de alegria e entusiasmo marcantes. Propiciou conhecer pessoas, namorar, tudo o que envolve atividades coletivas com significado de grupo identitário. Mas, ao final da adolescência, percebi, como o disse Juremir, que futebol é profissão para uns e negócio para outros, e que o emocionalismo exagerado de torcedores é tolice. Futebol é para ser vivido com paixão, não com ressentimento. É para compartilhar, não para dividir. É para amar, não para agredir. É para respeitar, não para ofender. Futebol não muda a vida de ninguém, apenas a torna mais alegre, se saudável e bem direcionada for a paixão.

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21.08.06 - A punição ao Grêmio, referida nesta crônica, foi atenuada após recurso para três jogos e cinquenta mil reais.


Crônicas & Artigos publicados terças e sextas-feiras no site do jornal Portal de Notíciashttps://www.portaldenoticias.com.br/colunista/53/cronicas-artigos-joao-adolfo-guerreiro/
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 13/08/2006
Alterado em 25/07/2020
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