João Adolfo Guerreiro
Descobrindo a verdade/ sem medo de viver/ A liberdade de escolha/ é a fé que faz crescer.
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Boneca negra anônima
Não assisto a TV aberta, a não ser jogo de futebol e, às vezes, jornal e filmes. Porém, quando vou visitar o meu pai aos domingos tenho que sentar em frente a televisão e assistir Raul Gil, Faustão e Gugu, programas que o velho acompanha.
O Raul Gil, com os cantores infantis, ainda me desperta interesse. Já os outros não me prendem a atenção. Poxa, agüentar aquele concurso de danças dos famosos do Faustão é dose! Rasgação de seda e comentários fajutos! O Gugu, decididamente, não faz parte dos meus gostos. Mas meu velho septuagenário pai gosta e eu respeito.

Então lá estou eu, no domingo retrasado, sentada na sala com meu pai. Ele está assistindo o Gugu. No programa tem uma macaca fazendo provas tipo comer doce ou banana, reagir a um homem vestido de chipanzé se aproximar, essas coisas. O pai muda para outros canais, para uns minutos no Faustão e depois volta para o Gugu.
Está uma moça mostrando uns bonecos para criança que imitam perfeitamente um bebê. Muito realistas. A moça vai dizendo:
- Ali são a “fulana” e o “ciclano”. São gêmeos.
Não lembro dos nomes, mas eram estrangeiros. Ela continua:
- Esses são “X” e “Y”, também gêmeos. Esse outro é “G”.
A seguir tem uma boneca da raça negra, a única. A moça verbaliza:
- Essa é a boneca negra...
E já passa para a outra:
- Essa é a “fulana”...
Foi rápido, mas não escapou a minha percepção. Comentei com meu pai:
- Tu viu?
- Ah? O que?
- Ali no programa. A única que não tinha nome era a boneca negra.
- É? Nem tinha me dado conta.
- Vai ver colocaram ali só pra fazer média racial. Mas nem nome deram!
- É mesmo. Ela é uma boneca anônima.
Isso mesmo, a boneca negra era anônima. Não tinha identidade e, tampouco, visibilidade social. Era praticamente uma coisa, mais circunscrita a sua condição de boneca do que as bonecas brancas, que possuíam nome estrangeiro e, logo, mais próximas à condição humana que representavam.

Isso me fez refletir. É normal, em sociedade, as pessoas tratarem as outras como coisas, como se fossem invisíveis, tornando-as sem visibilidade social. Recordei-me de uma vez em que estava conversando com um secretário municipal de minha cidade em seu gabinete. As mulheres da limpeza passavam por ali realizando a faxina e a copeira trazendo café. A nossa conversa girava em torno de assuntos melindrosos sobre pessoas e fatos. Eu, desconfortável, comentei quando ficamos a sós:
- Tchê, acho que não deveríamos conversar essas coisas na frente dos funcionários.
Ele pareceu surpreso com minha fala e eu fiquei mais surpreso ainda com a resposta dele:
- Ah, são o pessoal da faxina. Não entendem nada.
Retruquei:
- Mas como? Eles são gente, percebeu? E tem ouvidos e boca!
A impressão que fiquei é que ele não “enxergava” aquelas pessoas, eram como se fossem parte da mobília. Eram invisíveis para ele! Imagino que nem as cumprimentava ou lhes dirigia a palavra socialmente. Somente  lhes dava ordens.

Mas também há segregação racial no caso da boneca negra anônima, creio. Outra passagem veio a minha memória. Prometi, certa feita, presentear minha filha com uma boneca bacana. Na loja, ela gostou de uma boneca negra, de qualidade e de custo razoável. Comprei a boneca. Na hora, lembrei da minha professora de Pensamento Político Brasileiro, branca, que sempre dizia que passava os finais de semana com os negrões dela, já que era casada com um advogado negro e tinha dois filhos. Olhei para minha filha e pensei: “Sei lá, vai saber qual será o marido dela”.
Saímos pela rua e antes de chegarmos em casa passamos por uma senhora conhecida. Ela falou a minha filha:
- E essa bonequinha aí na sua mão?
- É minha filha!
- Mas ela não pode ser a sua filha, ela é pretinha.
Não gostei e tive de ser um pouco grosseiro:
- Mas é que o pai da boneca é negro, minha senhora, e é uma ótima pessoa, lhe garanto.
A mulher não falou nada. Ao chegarmos em casa expliquei para minha filha o que era preconceito racial e o motivo do comentário da senhora.

Eu, graças a Deus, fui criado na pluralidade racial, onde a pessoa é avaliada apenas individualmente, pela personalidade e caráter. Já namorei excelentes mulheres da raça negra e, se os relacionamentos tivessem avançado emocionalmente, poderia ter montado família com elas, da mesma forma que muitos casais que conheço e que são felizes e estruturados.
Boneca negra anônima. Lamentável.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 04/08/2006
Alterado em 02/02/2015
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