Zeus, o Solitário
Em seu pátio cercado com tela e arame farpado, de 30x4 metros, está Zeus. Sua cela de concreto é o único abrigo. Frio. Solitário. A não ser pelos agentes penitenciários que, por vezes, dão uma olhada para conferir se ele não está tentando cavar, fugir. Zeus não pode sair, pois não é considerado habilitado ao convívio social.
O único que está autorizado a entrar no cercado de Zeus é o policial militar que lhe traz as refeições. Esse é o seu único contato físico com outro ser. Zeus fica ali, o dia inteiro, vendo as pessoas que passam, os automóveis, as bicicletas.
Vê também Alemão, Preta e Branquela, que podem andar soltas por serem consideradas aptas ao convívio social. Eles já estão há cerca de quatro anos na casa, possuem regalias, constituíram relações afetivas com os funcionários. Zeus é recém chegado.
Alemão, Preta e Branquela formam, na verdade, uma família. Branquela é filha de Alemão e de Preta, uma das várias filhas e filhos de diferentes crias que, via de regra, eram levadas pelos agentes e pelas visitas dos presos. Branquela ficou.
Aliás, Alemão é pai de todos os filhotes nascidos naquela penitenciária e na cadeia vizinha, onde frequentemente passeia. Alemão, um “collie” mestiço, peludo, o gostosão das guaipecas das redondezas. Alemão, o Procriador. Alemão, o Casanova. Alemão, o Bon Vivant. Alemão, aquele em que nenhuma pessoa conseguiu chegar perto e tocar até hoje. Ele deve ter um trauma, deve ter sido muito judiado por alguém quando filhote. É essa. Pelo menos, a teoria comungada por todos na penitenciária.
Preta e Branquela, ao contrário, são extremamente acessíveis. Zeus também.
Embora enorme e preto, é afetuoso. Fui lá, junto a cerca, e chamei o seu nome. Ele veio, me cheirou, fez festa. Coloquei a mão por cima da tela, abaixo do arame farpado. Ele se levantou e eu acariciei sua cabeça. Poderia ter destroçado o meu braço se desejasse! Afetuoso o Zeus. Colocou o corpo junto a grade, pidão, e eu cocei o seu corpo. Afetuoso o Zeus.
Fico parado assistindo Zeus observar Alemão, Preta e Branquela. Não late feroz para eles, só observa. Pára, olha, agita-se, anda de um lado para outro e senta. Deve ficar tentando entender o que vê. Aqueles outros ali, soltos, brincando, e ele ali dentro, sozinho, sem contato com os de sua espécie. Zeus não sabe o que é viver em coletividade.
Zeus não tem família nem amigos, é solitário. Nem pulgas têm! Com certeza nunca vai andar solto por aí, como Alemão. Não vai poder sair a passear e namorar as cadelas da vizinhança. Não será Zeus, o Procriador. Seu destino é ser Zeus, o Solitário.
Zeus tem a sina de Cônan, o Bárbaro. Vai ser criado e treinado para lutar, ser soldado! Às vezes o seu dono vai largar uma fêmea no cio em seu cercado e ficar olhando para ver o desenrolar. Igual ao filme, onde o senhor-proprietário do escravo-gladiador Cônan coloca uma mulher em sua jaula e fica assistindo à cópula animalesca.
Zeus não vai poder andar em família como Alemão, brincar com a companheira e com a prole. Nunca terá companheira nem amantes e, certamente, nunca colocará o olho em sua descendência, tampouco conviverá com ela.
Todavia, não se revolta com a sua condição. É afetuoso, tem carinho guardado dentro do peito enorme. É um cão com o pleno potencial de sua natureza afetiva primordial de animal doméstico.
Até que o transformem numa fera! O treinem para ser um soldado anti-social. Daí duvido que alguém tenha oportunidade de ser bem recebido por ele. Será Zeus, o Bárbaro. E assim, cada vez mais, será Zeus, o Solitário.
Talvez, na velhice, se tornará um desses soldados seqüelados, que agridem a mulher e os filhos em casa. Ora, estará seguindo a sal formação, que é atacar o inimigo. Sem inimigo, vai a família mesmo, pois o potencial agressivo deve ser extravasado, senão o indivíduo implode.
Talvez Zeus ataque o seu dono ou o seu tratador. Quem sabe? Diz quem entende que isso é improvável. Mas quem sabe?
Eu, contudo, deixo o meu testemunho: Zeus é afetuoso. A sua formação vai negar a sua natureza! Zeus é apto para o convívio social. Não merece o destino de Zeus, o Solitário, pois é Zeus, o Afetuoso.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 01/08/2006