João Adolfo Guerreiro
Descobrindo a verdade/ sem medo de viver/ A liberdade de escolha/ é a fé que faz crescer.
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Textos
Dia de finados: O que é morrer?


Adolfo e Emília. Jazem juntos num sepulcro decorado com lajotas estilizadas em verde e branco com motivos florais, no cemitério de Charqueadas. Não há placa de identificação no sepulcro. Casaram no início da década de 40.
Quase setenta anos depois do seu casamento, como resultado da, digamos, matriz biológica e genética que foram, 27 pessoas, todas ainda vivas, conheceram o sol e a lua neste mundo de Deus. Três filhos, nove netos e quinze bisnetos.
Apenas os filhos compartilharam a existência nesse mundo com eles. Os dois partiram com quarenta e dois anos, ele em 1958, ela em 1966. Estiveram ainda presentes na família e neste mundo, por todos os anos após sua partida, na versão e na memória oral e fotográfica que seus filhos passaram aos seus netos. Estes não lhes conheceram, mas era como se vissem aquelas pessoas da foto se movendo, sorrindo, falando, amando, em suma, vivendo.
De todos essa gente acima mencionada, visitam o túmulo regularmente no dia de finados cinco pessoas: os três filhos, um neto, um bisneto. Três que vão visitar o que restou de seus genitores para reavivar e reconstruir suas memórias primeiras. Os outros, para zelar pela memória da família e refletir sobre a as versões daquelas existências e para refletir sobre o mundo, a vida e a morte. Todos eles conservam o jazigo.
O que é morrer? Sem entrar na questão metafísica, mas apenas se atendo a realidade histórico-social em que o ser humano existe nesse mundo concreto, morrer é o início do processo de deixar de existir para sempre. Daqui a setenta anos, quem ainda irá visitar a morada dos despojos de Adolfo e Emília?
Algum binesto, talvez. E passados outros setenta anos, quem irá? Ainda vai existir o túmulo? Ainda serão lembrados?
Responda depressa, pra si mesmo: Quem foram seus bisavós? Quem foram seus tataravós? Sabe alguma história de vida de algum deles que tenha sido contada pra você?
Morrer é o início do processo de deixar de existir.
Primeiro deixamos de ser uma estrutura biológica autônoma, depois nos desintegramos lentamente enquanto estrutura biológica inerte, depois começamos e desintegrar enquanto ente metafísico da realidade histórico-social. Depois sumimos sem deixar rastros. Somos inteiramente apagados deste mundo.
Quais eram as divindades cultuadas há 100 mil anos? Qual será o deus hegemônico no ocidente daqui a um milhão de anos? O que restará desse nosso tempo daqui a 100 milhões de anos? Daqui a cinco bilhões de anos, quando esse planeta sucumbir junto com o sol e o sistema solar, o que restará da humanidade?
O que é morrer? O que tem real importância no viver? “Tudo vale a pena se a alma não é pequena.” – Fernando Pessoa.
Qual foi a importância e o significado da vida e da morte de Adolfo e de Emília para eles e para os outros?
E para João e Maria? Casaram no final da década de vinte do século XX, quando Mostardas ainda era distrito de São José do Norte. Geraram 12 filhos. Seis ainda vivem concretamente nesse mundo. Toda a sua geração dá mais de 50 indivíduos. Um quarto desses lhes conheceram em vida (muitos nem se conhecem). Ainda vivem também na memória de sua descendência. Muitos nunca foram na sua morada final.
"A vida é bela", mas viver é sobreviver. Só o amor dá cor pra vida. Morrer é iniciar o processo de deixar de existir.


Quando tornar a vir a primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava de poder julgar que a primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera seu único amigo.
Mas a primavera nem sequer é uma coisa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam ou as folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.
(...)


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
(...)


Se soubesse que amanhã morria
E a primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.


Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.


Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma coisa e outra todos os dias são meus.”


Fernando Pessoa – Poemas de Alberto Caeiro: poemas inconjuntos.

João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 02/11/2009
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