Momentos, memórias
Estava dormindo quando ouvi as batidas delicadas na chapa de ferro que cobre a janela da portaria. Olhei para o relógio na parede. Eram 06:55. Abri o visor colocado no centro da chapa..
- BUUUUUUUUUUUUUU! – fez a moça, na rua, sorrindo de maneira marota.
Fiquei olhando para ela.
- Não se preocupe, não sou fantasma, sou de carne e osso. Sou funcionária. Quero entrar.
Claro que eu havia percebido que ela era funcionária da firma. Eu tinha ficado parado por ter sido tocado, de maneira imediata e incomum, pela simpatia dela. Quem chegaria ao trabalho, naquela hora inusitada, com tal “luminosidade”? Seu sorriso era um dos mais felizes que eu tinha visto até então. Feliz, mas sem exageros. Um “feliz” que vinha de algum brilho interior, de uma alma cativante e resplandecente.
Levantei do sofá e fui abrir a porta de acesso a parte interna. Ao abrir retruquei:
- BUUUUUUUUUUUUUU! – ela sorriu com mais felicidade ainda, e agora eu fiquei encantado. Nunca havia tido essa sensação plena de encantamento, imediata, ante uma mulher estranha, que eu nunca tinha visto.
- Posso entrar? – perguntou. Só então eu dei-me conta de que havia ficado parado em frente a porta olhando para ela.
- Por favor, fique a vontade – respondi, dando o lado para ela passar. E ela continuava sorrindo, de maneira adorável. E eu cada vez mais encantado com ela, de uma foram tão abrupta que eu nem sabia como lidar com esse sentimento. Percebi que ela passou a sorrir um pouco mais leve, enquanto me olhava. Aí fiquei um pouco embaraçado, pois, claro, ela percebeu que havia me “tocado”. Não que ela pudesse ter a noção exata do que acontecia comigo, mas percebeu que havia chamado a minha atenção com certa intensidade.
- Sabe onde fica o setor A5? – perguntou, um pouco embaraçada também, mas ainda assim “luminosa”. Com certeza ela tinha uma “energia” interior muito intensa, cativante.
- Claro moça, fica depois do prédio azul, a esquerda. Tem uma placa indicando o local.
- Obrigada – disse.
- Não há de quê – respondi.
Ela começou a se afastar em direção ao seu destino. Eu fiquei olhando, com o olhar preso no seu andar.
- Não vai assustar ninguém lá, viu – falei, sem querer, sem nem mesmo saber porque havia dito aquilo, como se não tivesse controle sobre minha fala. Me senti bobo. Ela apenas olhou para trás e deu novamente um sorriso maroto e luminoso. Me senti recompensado. Encantado. Enquanto ela se afastava uma leve tristeza se apossou do meu espírito. Algo veio à memória, uma lembrança emocional, tipo “já senti exatamente isso antes”.
Lembrei de quando era adolescente, uns 16 anos, e acompanhei a minha mãe numa viajem a Porto Alegre. Estávamos num prédio que não lembro mais, nem o motivo de estarmos lá. Entramos no elevador e, no andar seguinte, subiu uma moça. Era morena clara, cabelo curto, estatura média-baixa, corpo bem definido. Usava uma calça de brim azul, uma camisa bege justa colocada por dentro da calça e trazia consigo uma bolsa preta. Cantava para si um música qualquer, e parecia estar com a alma muito leve, levíssima. Embalava o corpo muito sutil e graciosamente. Eu fiquei olhando para ela, do fundo do elevador. Ela percebeu, olhou para mim e deu um sorriso amigável, embora distante. Um “tudo bom” quase gestual. Como sempre fico nessas situações, embaracei-me. Ela continuou cantando baixinho e gingando levemente. Chegamos no térreo. Uma tristeza súbita se apossou de mim, um sentimento de perda irreparável. Ela seguiu em direção a saída e eu a segui com os olhos. Nunca mais a vi. Nunca mais a esqueci. Fazem vinte anos isso.
Larguei do meu turno às 08 horas, e a encantadora “fantasminha” não deu mais o ar da sua graça. Não a vi desde então. Nunca mais vou vê-la? Nunca mais vou esquecê-la. Que mulher simpática e encantadora, mas de uma simpatia viva, que você sente e não tem dúvidas de que é naturalmente sincera e verdadeira, de uma maneira simples e intensa. Aliás, como tudo o que é especial, único, pleno. Espero que a vida não a modifique, tornando-a dura, desiludida, amarga. Que a vida não lhe roube a luz interior. Que Deus a proteja, para o mundo não ficar sem a sua luz, para um marido não ficar sem um “anjo” na sua vida e um filho sem uma mãe doce, amorosa e atenciosa como uma fada madrinha. Aquela mulher é um ser humano especial, daqueles que a gente vê e percebe no ato. E deixou em mim um encantamento tão forte, que nunca mais esquecerei, tenho certerza.
Só não consigo entender o porque dessas coisas, desses sentimentos.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 09/05/2006
Alterado em 09/05/2006