Constatação
Acordei primeiro que todo mundo e fui tomar meu café da manhã. Pensava na vida, em como anda o mundo. Ao abrir o armário escolhi a xícara que ganhei de Natal do Toninho Júnior, meu filho. Ao sentar na mesa fiquei refletindo sobre aquele objeto simples, mas que para mim encerra um significado emocional único.
Quanta coisa está por detrás de um simples objeto daqueles. Primeiro teve que haver a origem de tudo o que existe e, depois, da humanidade. Quanto teve de evolução biológica e técnica da humanidade até um antepassado remoto nosso ter tido a idéia de utilizar um utensílio para beber água? E quanto mais de avanço técnico até o homem pensar em construir um objeto para tal fim, em vez de aproveitar algo apropriado que pudesse ser coletado na natureza? E quanto mais de evolução até chegar a forma ideal, a da caneca?
Olhando a cor da caneca, o desenho e a frase “para um super pai”, fiz mais constatações. Quanto tempo até o desenvolvimento da técnica de pintura em cerâmica? E a escrita, quanto de evolução e de trabalho humano reflexivo e intelectual ela exigiu, ao longo dos séculos? E a escrita portuguesa, em particular, quanto tempo de maturação até atingir o seu estatuto lingüistico atual?
E para o meu filho comprar a caneca? O dinheiro que recebeu veio de alguém que tem trabalho e saúde para trabalhar e enxergar o que está escrito na caneca. Alguém que trabalha oito horas diárias, tem previdência social, décimo-terceiro salário, férias remuneradas, coisas pelas quais muitos tiveram que dar a vida para obter nas lutas operárias do século passado.
E para receber um simples presente daqueles tem que se ter nascido, de um pai e uma mãe, que o proveram na idade em que era um bebê sem condições de sobrevivência autônoma. Tem que ter conseguido sobreviver até a idade suficiente para ser pai. Para sermos pais, temos que ter saúde que dá fertilidade e virilidade. Temos que encontrar alguém que nos considere ao ponto de querer ter um filho conosco. E para olhar esse objeto na sua residência, enquanto os outros membros de sua família dormem, tem que se ter uma casa e uma família estruturada financeira e emocionalmente. E para escrever sobre isso, temos que ter tido toda uma base que nos permitiu estudar, desde os requisitos biológicos para tal até as condições financeiras. O ato mecânico de escrever, por si só, requer adequada capacidade motora.
A constatação final é pela grandiosidade daquilo que temos, até das coisas mais simples.
Quando você for reclamar da sua vida, olhe para aquilo que você tem. Pense que muitos nem nasceram, outros morreram jovens, outros são solitários, outros não tem saúde, outros não tem liberdade, outros estão desempregados, outros não tem paz de espírito, outros não tem visão, outros estão limitados numa cadeira de rodas... Em suma, pense em todos aqueles que, por um motivo ou outro, estão incapacitados de ter a oportunidade que você tem. Não sentirá nada parecido com consolo, tenha certeza. De fato, cada constatação retirará uma venda de seus olhos.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 01/05/2006