Nos tempos da revista Violão & Guitarra
Lá pelo final dos anos 1970 e início dos 80, quando o cara começava a aprender violão, certas coisas eram obrigatórias, pelo menos lá na Vila Cohab, em Charqueadas: tinha de executar Vento Negro, dos Almôndegas, com aquele solinho da introdução junto. Aí tu já podias dizer pro pessoal que tocava violão que eles aceitavam. Se fizesse o solo de Milionário, dos Incríveis, ou algum do Santana, tipo Europa ou Samba Pa Ti, daí os caras passavam a te respeitar de verdade. Agora, se tu tocasse direitinho pelo menos a sequência de arpejos iniciais de Stairway To Heaven, do Led Zeppelin, ficarias num nível elevado no conceito da rapaziada.
Um cara, assim, tipo fenômeno, seria aquele que tocasse o icônico solo da canção. Nunca vi, na época, um cara fazê-lo ao vivo, aqui por essas bandas. O autor da canção e do solo é um inglês chamado James Patrick Page, conhecido no mundo do rock como Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppelin. Hoje ele faz 75 anos. Nunca esqueço da data porque ele nasceu seis dias depois da minha mãe. E também porque, claro, foi e é minha maior influência no violão e na guitarra. Recordo da primeira vez que ouvi falar do Led. Foi em Porto Alegre, quando estudei lá, aos 16 anos. Os colegas da capital conversavam sobre a banda e tinha um que tocava a intro de Stairway. Peguei um violão velho de cordas de aço com o qual minha mãe havia presenteado minha irmã e fiz usocapião, já que ela só o usava como decoração.
Bom, daí certo dia os colegas disseram que haveria um especial da banda na rádio Ipanema FM, no programa da Katia Suman, não sei se das 20h às 22h ou se das 22h às 00h. Comprei duas fitas cassete e fiquei a postos com o rádio-gravador Philips que o meu pai deixara de usar e havia passsado pra mim. Começou o programa e gravei as canções, sempre apresentadas num bloco de três, com a Katia dando um toque sobre elas antes. Recordo que Stairway não chamou muito minha atenção, mas quando Whole Lotta Love entrou pelos meus ouvidos, meu cérebro se acelerou e a pele dos meus braços ficou arrepiada. Puxa vida, que sensação mais legal aquela. Dazed and Confuzed foi outra que fez minha boca abrir. Estava sozinho no meu quarto lá no apartamento de um casal de primos bem mais velhos, num conjunto habitacional fechado situado na Estrada do Forte. Inesquecível. E pensar que canções do primeiro disco do Led, como Dazed, foram feitas numa... Fender Telecaster! Isso mesmo, ele só usaria a Gibson Les Paul com seus captadores humbucker a partir do Led Zeppelin II. Toda essa sonzeira pesada com timbre e efeitos enormes sai dessa guita com captadores single que ele ganhara de presente do guitarrista Jeff BecK.
Apanhei muito até aprender a intro de Stairway, que era o mais fácil e acessível que havia deles para tocar no violão. Aquela sequência descendende em lá menor, com posições nas quatro cordas mais agudas, iniciando na quinta casa do braço do instrumento, feitas com meias pestanas, deixava doloridos meus dedos iniciantes, contudo me fez apreciar a canção. E aquele solo, ah, aquele solo, ouvi ele centenas de vezes. Estraguei a fita de tanto voltar sempre para o início dele e repetir. E naquele tempo não tinha as facilidades de hoje. Tu pegava, no máximo, a canção numa revistinha com as cifras, a famosa Violão & Guitarra (ou Vigu, como era também chamada), se achasse nas bancas uma em que ela viesse, e ia se virando, com um toque dos caras que sabiam alguma coisa a mais que tu. Não existia vídeo, tablatura em revista ou internet, nadinha disso. Tempos imemoriais, dinossáuricos, old school. E eu consegui, de banda pela capital, uma Vigu especial do Led, que tenho até hoje, e que continha um texto crítico longo sobre a banda, seu histórico e as canções cifradas e traduzidas. Uau syl, uma maravilha, o nirvana! Todavia, perto das tablaturas da internet de hoje, era algo muito rudimentar, um osso da idade da pedra lascada, vixe!
Tenho vivo na memória a primeira vez que vi o Led na televisão. Foi na TVE ou num programa do Clóvis Dias Costa: eles tocando Stairway To Heaven na versão do show que aparece no filme The Song Remains the Same, ou, como intitulado nos cinemas brasileiros, Rock é Rock Mesmo. Fiquei embasbacado, em choque, assistindo. Foi mágico. Só estranhei um pouco o fato deles alterarem bastante a canção no palco, principalmente no solo, que Page aumentava e descaracterizava muito em relação à mágica versão original de estúdio. Mais a paulada nos sentidos que foi ver os caras tocando pela primeira vez foi tamanha que suplantou todo e qualquer senso crítico que eu fosse capaz de possuir na época.
Na Vigu especial sobre o Led estava, obviamente, Whole Lotta Love. Todavia, ela era cifrada como "(D E)", ou seja, sinalizada uma repetição harmônica durante toda a canção. Eu tocava aqueles acordes de ré e mi maior no meu violão e não ficava igual ao riff, claro. E rock é, basicamente, riff. Então tentei tirar de ouvido algo que soasse parecido. E consegui! Melhor, achei que conseguira. Whole Lotta Love, original, basicamente consiste numa linha que repete duas vezes no bordão as notas si e ré e finaliza num powerchord de mi, suspenso (só com a primeira e a quinta nota na formação do acorde, sem a terça que o define como maior ou menor), armado na sétima casa do braço da guitarra. Tem uns macetes técnicos na execução, mas não é o caso de falar disso aqui. O que eu fiz na primeira vez foi, no bordão mais grosso do violão, que é a sexta corda, mi grave, fazer o riff em mi-sol mi-sol e fechar em lá, só soando a nota na corda.
Mas bah! Me achei o cara! Já os vizinhos me odiaram, alguns até me xingavam. Acontece que eu dei uma aditivada no tal violão: comprei um captador de contato, que a gente fixava com uma massinha cinza no tampo do instrumento, e conectava-o a minha caixa amplificada Frahm de 20w, ligada no talo para dar uma distorção! Para dar mais estilo ainda na coisa, peguei a alça de uma mala para usar como correia, que eu engatava em dois parafusos-gancho que fixei no violão a fim de poder tocá-lo em pé. Pronto, agora eu tinha minha versão gambiarrenta de Gibson Les Paul do Page e tocava nela a tarde inteira a minha versão tosca de Whole Lotta Love. Um primo meu chegou lá em casa um dia e perguntou: "Você só sabe tocar isso?" Como assim, ora bolas? "Isso" era um dos clássicos do Led Zeppelin, pô! Naquela época eu ainda não discernia bem que as pessoas pudessem achar enfadonho aquilo que a gente tinha por o máximo do máximo do máximo. Não tava nem aí, eu era o Jimmy Page da Cohab lá no meu quarto da Super Quadra 2 Quadra 9 Casa 01, tocando para os posters do Led e da Vera Fischer, nua, fixados nas paredes, para suplício de vizinhos e paciência de pais e parentes. Ô coisa boa.
Creio que só os veteranos chegaram a esse ponto da crônica, pois para os mais jovens, acostumados com as atuais víceo-aulas, mastigadinhas, meu relato deve ser apenas de interesse arqueológico, tipo assim como os homens das cavernas faziam as pinturas rupestres. Então, finalizando, parabéns, Jimmy. Tu não sabe que eu existo e nunca nos vimos, mas fostes uma pessoa influente em minha vida. Tenho todos os CD's do Led Zeppelin (alguns em LP) e vários DVD's, incluindo o do filme e a apresentação do O2 Arena, que também foi para os cinemas. O Led acabou em 1980, depois da morte do baterista. Eles se reuniram para shows uma vez ou outra, mas nunca mais retomaram a atividade como banda. Hoje eu acho que vou ligar a guitarra nas caixas de som para tocar uns riffs do Led. Não muito alto, para não incomodar a mulher e os vizinhos, né.