Nesta segunda-feira completamos, eu e a minha esposa, 55 dias de quarentena.
55 dias foi o tempo em que, durante o Revolta dos Boxers na China, em junho de 1900, os boxers cercaram a zona das embaixadas em Pequim. Há 120 anos. O cartaz se refere a um filme de 1963, que gosto muito, sobre o fato. Eles ficaram em quarentena, sob ataque, aguardando reforços, que chegaram na forma de uma força de 20 mil soldados de vários países. Assistimos o filme agora, na virada de 17 para 18 de maio.
Nós não estamos sob ataque direto, mas sim cercados pelo vírus que não se vê. Então, o isolamento e a quarentena são nossas armas eficazes para uma situação sem remédio ou vacina. A dos diplomatas durou 55 dias. A nossa, quanto durará? Ninguém sabe. Mandetta, antes de sair do Ministério da Saúde, fez um prognóstico de que em setembro ou outubro as coisas estariam melhorando no Brasil. Quiçá. Oremos, como ele mesmo disse agora, quando o ministro que o substituiu não faz nem um mês já pediu para sair.
Na madrugada de sábado para domingo, tomamos um vinho Aurora de 2014 com salsichão de frango assado como acompanhamento, enquanto assístíamos Casablanca em DVD. Mas bah, sinceramente, não sei o que estava melhor, tudo perfeito.
Eu olhei o filme por indicação de um cronista lá do Recanto das Letras. Nunca o vira com a devida atenção, creio. Olhando pelos olhos dele, entrei no drama. O filme é de 1942 e muitos dos artistas que participam encontravam-se realmente asilados nos Estados Unidos, oriundos da França ocupada, como a bela atriz abaixo, Madeleine Lebeau, com 19 anos na época. Numa cena antológica, as pessoas do bar cantam a Marselhesa para abafar os nazistas e suas canções. Conseguem. Madeleine chora de fato ao final e grita Viva la France! Casablanca, no Marrocos, era uma região não ocupada da França. Madeleine foi a última artista do elenco de Casablanca a morrer, em 2016, aos 92 anos.
O personagem que mais me cativou foi Victor Laszlo, o líder político tcheco perseguido pelos nazizstas. O personagem era uma figura humana de alto valor, um cara de muita integridade e grandeza.
VIVENDO E APRENDENDO - Essa experiência difícil e estressante que está sendo o isolamento social contra a pandemia de coronavírus, onde a vida está em jogo, sem certeza frente ao amanhã, é um momento de muito aprendizado. Uma profunda reflexão sobre a vida que vínhamos levando até então, nossos relacionamentos e prioridades, tudo isso deve ser revisto, face ao que observamos. Numa situação dessas muitas coisas se revelam e é como se a realidade, rapidamente, se apresentasse ante nossos olhos de uma forma tão clara como não poderíamos perceber em muitos anos de vivência. Numa situação-limite como essa, as pessoas se mostram como verdadeiramente são em suas prioridades e afeições, demonstrando o que realmente lhes importa e quem é importante para elas, bem como a grandeza e a pequenez de suas almas, de suas inteligências e das suas percepções da realidade, de como enfrentam o momento, cientes de sua gravidade, sucumbindo diante da mesma via um pensamento fantasioso ou usando da inteligência para fazer o que deve ser feito de correto e prático. Todos ficamos transparentes e nos revelamos uns aos outros, e muitas vezes o que a gente pensava que era agora mostra-se muito diferente em sua natureza.
Passando por isso, minha vida vai mudar com o que estou aprendendo, mudar muito, na relação com as outras pessoas, tanto nos compomissos políticos e sociais quanto de caridade. A prioridade do tempo, das coisas, das pessoas e do dinheiro. Novos valores, coerentes com a realidade percebida, substituirão os velhos, que se revelaram engano e ilusão. Com os olhos abertos e a luz da verdade a clarear as coisas nesse momento, um homem diferente surge, não um novo homem, mas o mesmo homem agora ciente das coisas e das pessoas como elas são. Não dá para dar o seu tempo e o seu melhor para o que não lhe é próximo, ao mesmo tempo que a consciência da responsabilidade social como homem na sociedade humana urge. Reformular relações e prioridades, por um lado, na esfera particular, num movimento de renovação e mudança, ao mesmo tempo que, na esfera social, volta-se empaticamente para as questões da humanidade na forma de ações práticas em benefício ao outro e a sociedade. Fechar-se no particular e abrir-se no social. É o caminho que percebo hoje. As pessoas e as coisas são o que elas são, cabe a nós ver, aprender e seguir o caminho da experiência buscando uma vida melhor, voltada para o que nos é verdadeiramente próximo. Não para o que apenas faz parte de um teatro de conveniências e tradições despidas de um sentimento real de afeição. Vamos gostar de todos e obrar por todos, mas intimamente partilhar com quem o deseja sinceramente conosco, por afeição real.
Para passar por esse momento vamos precisar de sorte, atenção, persisitência, paciência, calma, disposição, trabalho, inteligência, culto a saúde física e mental e percepção clara da realidade. Orar, obrar e jejuar, há de se entender o significado real dessas palavras e tranformá-las em ação prática e lúcida nesse momento. É um significado mais amplo que a mera acepção dessas palavras, exige um reflexão mais profunda de seu significado prático. E ter sorte, a sorte que pode sorrir para quem obra, ora e jejua, embora não existiam garantias nesse momento, a ninguém, apenas probabilidades. Deus, minha vida é bela, obrigado por tudo. A Ti só agradeço e sobre nada reclamo. Te peço que ilumine a mente e o coração daqueles que, nesse momento, tem a autoridade para decidir o caminho da sociedade no combate a esse mal que aflige a todos os irmãos do planeta. Que eles, nas medidas adotadas, defendem a vida dos mais fragilizados, que são os pobres e as pessoas dos grupos de risco.
PS - Desde o dia 19 de março não vejo os meus pais, só falo com eles por telefone, diariamente. A Joana não apareceu por aqui esse final de semana. Parece que vem amanhã, rapidamente. Melhor assim, não a quero circulando pelas ruas.