João Adolfo Guerreiro
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Meu Diário
28/11/2008 12h49
O centenário do Mito
Texto (e foto - arte de Pedro Dreher) extraído de coluna de hoje do jornal Correio do Povo de autoria do jornalista e escritor gaúcho Juremir Machado da Silva:

Cem anos! Claude Lévi-Strauss comemora hoje o seu centésimo aniversário. Francês, embora nascido na Bélgica, o antropólogo tanto estudou os mitos indígenas que praticamente se transformou num deles. Se Pedro Álvares Cabral foi o primeiro europeu a 'descobrir' o Brasil, não se levando aqui em consideração outros viajantes apressados e quase esquecidos, Lévi-Strauss 'descobriu' o Brasil uma segunda vez, na década de 30 do século passado, até para os brasileiros. Jovem professor, em busca de experiência e de aventuras intelectuais, ele aceitou integrar a missão que ajudou a fundar a Universidade de São Paulo. Ao chegar ao Brasil, percebeu que a elite paulista sabia muito sobre a Europa e quase nada sobre a cultura cotidiana profunda que a cercava.
Quando perguntava o nome de uma árvore nativa, nas ruas da pequena São Paulo de então, ficava sem resposta. O 'exílio' brasileiro de Lévi-Strauss resultaria na criação da antropologia estrutural e em algumas obras-primas na fronteira das ciências humanas e da literatura. É o caso do clássico 'Tristes Trópicos', uma espécie de 'Casa Grande & Senzala', escrito por um estrangeiro, cujas primeiras frases são conhecidas de cor por qualquer intelectual que se respeite: 'Odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a relatar as minhas expedições'. Só fez isso em 1955. Já tem algo de um mantra. Como a primeira frase de Proust: 'Durante muito tempo, eu me deitei cedo'. Ou de Gilberto Freyre: 'Quando em 1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um século inteiro de contato dos brasileiros com os trópicos'. Tristes...
'Tristes Trópicos' é o tipo de livro que qualquer um daria a vida para ter escrito ou que qualquer pessoa de bom gosto levaria para uma ilha solitária, se esse gênero de imagem não fosse de mau gosto. Lévi-Strauss narra os seus encontros com as culturas Caduveo, Bororo, Nambikwara e Tupi-Kawahib. E, claro, com os paulistas. O grande lance de Lévi-Strauss foi provar que o pensamento selvagem não é primitivo. Exceto, quem sabe, o dos paulistanos: 'Um espírito malicioso definiu a América como sendo uma terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. Poderíamos, com mais razão, aplicar essa fórmula às cidades do novo mundo: vão da frescura à decrepitude sem se deterem no antigo'.
Que paulada! O antropólogo zomba de uma moça que achara Paris suja: 'A brancura e a limpeza eram os únicos critérios de que dispunha para apreciar a beleza de uma cidade'. Em relação à culinária não era diferente. De uma sobremesa dizia-se doce ou muito doce. Lévi-Strauss chocava-se com a 'falta de reminiscências', raiz da nossa deficiência de memória, e antecipava: 'A passagem dos séculos representa uma promoção para as cidades européias; para as americanas, a simples passagem dos anos é uma degradação'. São Paulo comprova a cada ano que o mestre tinha razão. O ritmo de construção na cidade era frenético, uma casa por hora: 'E todavia São Paulo nunca me pareceu feia: era uma cidade selvagem, como talvez todas as cidades americanas, com exceção de Washington'.
Vale ainda uma citação de 'Tristes Trópicos: 'Ao ver esses professores miseravelmente pagos, obrigados a executarem trabalhos obscuros para poderem comer, senti orgulho de pertencer a um país de cultura antiga no qual o exercício duma profissão liberal estava rodeado por um conjunto de garantias e prestígio'. Será que mudou algo?

juremir@correiodopovo.com.br
Publicado por João Adolfo Guerreiro
em 28/11/2008 às 12h49